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quinta-feira, 6 de maio de 2010

Nigella bites 2



“Ela é uma porca!”, lança-me ele com um ar verdadeiramente enojado.

“Ela” é Nigella Lawson, a jornalista inglesa que virou cozinheira para deleite da clientela masculina que frequenta a tasca do meu vizinho. E suponho que não só.

Entre um caldo verde fumegante ou um bitoque apressado, é a segunda vez em pouco tempo que, após furtar-me aos meus deveres de cozinheira, deparo com “a outra” a paralisar o serão dos habituais frequentadores, que pensava eu, iam ali pelo futebol ou pela discussão política.

Começo a duvidar de que os caracóis e as imperiais sejam os verdadeiros motivos desta peregrinação das quintas-feiras lá pelas 9 da noite, quando, subitamente, sem que nada o faça prever, calam-se o futebol, os concursos e as novelas e se liga a SIC Mulher, trazendo consigo uma atenção quase reverencial.

De um minuto para o outro deixam de ser importantes as vitórias e derrotas do Benfica, a maré negra no Golfo do México, os espirros do Eyjafjallajökull, os consequentes voos cancelados, a pancadaria nas ruas de Atenas, a dívida externa e a falta de confiança dos investidores.

Tudo fica em silêncio e de pescoço virado para o LCD de tamanho familiar
: “Nigella bites”, o programa que faz parar a tasca da minha rua e deixa os homens, proprietário incluído, tomados das mais diversas paixões, dignas do Tratado cartesiano do mesmo nome.

Quando sorrio ao ver-me perante uma situação idêntica àquela que descrevi neste Blogue há alguns dias (aqui), e dou a entender ao meu vizinho que me agrada que ele deixe a televisão num canal de televisão feminino, responde-me daquele modo desconcertante: “Ela é uma porca!”

Fiquei embasbacada, entre o incrédulo e o estupefacto. Confesso que me passou tudo pela cabeça. O que terá ele visto que a gente não viu? O que saberá ele que nós, público anónimo, não sabemos? Terá dela descoberto algum passado escabroso? Terá a Nigella protagonizado algum filme erótico? Uma sessão de fotografias nua para a Playboy? Why not? Se tantas celebridades já o fizeram?

Bom, o meu vizinho, raciocino, deve ter lido algum gossip numa qualquer revista do social. E o senso comum, deuses! cruxifica qualquer uma à primeira escorregadela!

Mergulho outra vez no delírio: já sei, deve ter enganado o marido com algum cameraman ali do programa… e foge-me a imaginação para coisas ainda mais picantes, (faço o filme completo) nos intervalos das gravações, no próprio set das filmagens, comida e sexo, mistura explosiva, que não vou poder descrever num Blogue de bons costumes como este.

Acordo desta rêverie quando o meu vizinho me descreve prosaicamente porque é que a Nigella é porca:
“Ouça bem: ela guarda as sobras do vinho dos copos dos convidados, han, que estão à mesa a jantar, han, e não faz mais nada, vizinha, deita tudo num saco plástico e congela no figorífico. Já viu bem, han, a porca?! Já viu se eu fizesse isto aqui com os môs clientes, han, o que é que a vizinha ia dizer? Han??? Nunca mais ninguém cá vinha…!”

Olho para o ar tão enojado como indignado do meu vizinho, que parece perceber que eu ainda não percebi a cena toda e faz questão de me explicar o resto:
“Ela recolhe as sobras do vinho dos copos, congela e depois usa-o para fazer um refogado daí a uns dias. Han, tá a ver, vizinha? Só pa não gastar dinheiro num raio duma garrafa de vinho!!! Uma ganda porca, é o que ela é!”

Estupefacta, fico com o copo meio de água do Caramulo na mão, parado no ar, sem saber se vou beber mais ou não, muito embora a minha boca permaneça aberta e a minha cara assim entre o estúpido e o incrédulo, se ao espelho me visse…

Só pode ser verdade, tal a forma convincente como a cena foi descrita. Efectivamente, rebobinei na memória os vários programas da Nigella. Já a vi fazer isso, mas passou-me ao lado, no meio de tantos movimentos que ela desenvolve na sua bancada de trabalho. Indulgentemente, devo ter interiorizado que ela só tinha guardado o resto dos copos do vinho que usa na confecção dos seus cozinhados.

Não me deve ter apetecido registar como “porcarias” algumas das coisas que um olhar mais atento não deixa passar. Por exemplo, cortar a salsa directamente, após arrancá-la do vaso, sem a lavar, fazendo o mesmo com as framboesas, que retira directamente das caixas que traz do mercado, para a panela, abrir os ovos nas mãos ou meter descaradamente o dedo na mousse e lambê-lo gulosamente como fazem os miúdos.

Assisti ainda às últimas duas frases da Nigella no programa que decorria na tasca:
“Não me preocupo muito com questões de higiene!” e ainda: “Não gosto de desperdiçar absolutamente nada!” Ela dizia isto enquanto preparava uma suculenta espetada de ananás grelhado, mergulhado num creme de chocolate derretido com natas, prelúdio de algo que, indubitavelmente havia de enlouquecer daí a poucos momentos a clientela masculina.

Na minha memória a frase condenatória do dono, que, contudo, nem sequer coloca a hipótese remota de mudar de canal ou não ver todos os seus programas mais que uma vez.

Pedi a conta e saí mesmo a tempo de ouvir uma voz lá do fundo:
"Tão a ver, ali não se desperdiça mesmo nada!" o dono parado com as travessas na mão no meio do caminho, e todos com os olhos a brilhar, pescoços torcidos a vê-la lamber-se enquanto mete gulosamente na boca um grande pedaço de ananás espetado num pau a pingar chocolate derretido…



A pedido de várias famílias deixo aqui em português a receita desta sobremesa que se chama Pavlova e parece enlouquecer a Nigella. Experimentem vocês também:

PAVLOVA

Bater 6 claras em castelo com 300 gramas de açúcar.
Deitar umas gotas de vinagre balsâmico para dar firmeza ao merengue por fora e deixá-lo crocante, mantendo-o macio por dentro.
Juntar 3 colheres de sopa bem cheias de cacau preto em pó e 50 gramas de chocolate preto em barra de boa qualidade finamente cortado.
Adicionar tudo ao merengue com suavidade.
Montar num tabuleiro forrado de papel vegetal e fazer um monte que se alisa com uma espátula.
Vai ao forno a 180º durante um minuto e depois passa-se para 150º para ficar crocante por fora e macio por dentro. Deixa-se cozer lentamente durante uma hora e um quarto.
Depois de arrefecer cobre-se com chantilly e framboesas.
Por fim salpica-se com farripas de chocolate preto por cima.
Dá 8 a 10 porções.

2 comentários:

  1. O texto está excelente. Como de uma coisa tão simples se faz uma historia em jeito de comédia. Very Good

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  2. Eu ri muito com teu belo texto.

    Sou fã da Nigella, mas concordo com o fato de que ela faz coisas "curiosas" na cozinha. Gosto das receitas, não faço como ela determinadas coisas, mas cada um tem bom senso para saber o que se deve ou não fazer.

    Ela é uma mulher bonita e sem dúvida chama atenção para a forma "sexy" de falar da comida e do fazer a comida. Eu a acho engraçada e chamo meu marido para ver e comento quando ela faz algo mais ousado.

    E foi assim, com esse jeito diferente de apresentar um programa culinário que a Nigella ficou famosa.

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