Um tiro em Atenas
"Era um velho decente, formal e limpo. E havia nele memórias, sofrimento e grandeza. Olhou em volta. Nem a
sombra de um remorso nem aquele limite denso e excessivo que a idade costuma
expor. Olhou em volta e talvez estivesse a lembrar-se dos vendedores de
esponjas de antigamente, que ofereciam o produto na praça da Constituição; ou
das tavernas com parreiras, na Plaka, sob as quais comera queijo de cabra e
bebera resinato, nos longos dias de calor. E de mulheres com quem dançara,
pelas festas perdidas para sempre.
Passara por muitas coisas de infortúnio e por
algumas alegrias selvagens e dispersas. Transfigurada de ventos e de silêncios,
a cidade fora invadida pelos nazis, envolvendo de medo e atrocidades o chão
sagrado dos deuses, dos poetas e dos filósofos.
Atravessara o luto criado pelos coronéis, com a
consciência de que a adversidade era fruto da falta de bondade e de compaixão,
aparentemente inexplicável. Fora preso por querer ser livre. Conhecera as
rudezas do desemprego, e os ténues acenos de uma esperança obstinada. Depois,
como se a sociedade precisasse de um mundo de compensações, haviam-lhe reduzido
o ordenado, e aumentado tudo o que pertencia aos domínios da sobrevivência
estrita. Mais tarde, extorquiram-lhe os subsídios e limitaram-lhe os proventos
de uma reforma escassa.
Suportou as gradações da infelicidade, porque
aprendera que a infelicidade nunca é lisa, e dispunha sempre de diferentes
medidas de circunstância. Chegara, assim, ali: àquele plaino com relvado, de
onde se divisava o que desejasse ser divisado. E descobrira, exausto e triste,
de que pouquíssimas vezes o tinham deixado ser feliz e livre.
Soltou um grito. Como se quisesse desabafar a dor
insuportável que sobre ele tombara, lhe vergara os ombros e lhe ferira o mais
secreto da sua fé. As coisas são como são, diziam. Mas ele não queria que as
coisas fossem como queriam que elas fossem.
A partir de certa altura, decidira manter uma
atitude respeitosa e marginal. Nem mesmo assim obtivera paz e sossego. A
verdade é que um homem está sempre ligado ao seu passado. O aparente apaziguamento
interior não domesticara a ira, a cólera e a indignação que sentia, sobretudo
quando a sua terra deixara de ser a lenda e a história e fora transformada numa
litografia imbecil.
Quando gritou, gritou para aqueles que o não ouviam
ou não desejavam ouvir. Assaltara-o o medo de ter, num futuro próximo, de
esgaravatar nos caixotes de lixo, em busca de comida. E de deixar aos filhos e
aos netos o peso de dívidas e a impossibilidade de as pagar. Sentou-se na
relva. Ninguém o olhou. Há muito que as pessoas não se cruzavam:
trespassavam-se.
Gritou: eles não respeitam nada nem ninguém!
E disparou o revólver na cabeça.
Dimitris Christoulas, 77 anos, reformado, grego.
Nosso irmão."
Baptista Bastos
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