Este é o número estimado de meninas que sofreram mutilação genital no mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde. É alarmante esta verdade que, apesar da crueldade que a prática implica, continua a existir debaixo dos nossos olhos distraídos.
Estão referenciados 28 países africanos onde a mutilação genital feminina é prática corrente e socialmente aceite, mais uns quantos no resto do mundo, como a Indonésia. Portugal é considerado pela OMS como um país de risco. Esta ação tem lugar entre nós, por muito que nos custe a acreditar, assim como na vizinha Espanha, apesar de ser considerada crime.
A jornalista Conceição Queiroz apresentou um trabalho de reportagem a 28 de Março de 2011 sobre este flagelo, depois de ter andado por África a fazer um levantamento da situação. Numa região entre o Quénia e o Uganda encontrou uma província em que 90% das meninas eram mutiladas. E numa determinada comunidade propuseram-lhe algo como “se quiser, nós fazemos, para a sua reportagem”. Tratava-se de uma menina de três anos! A jornalista, não só evidentemente não quis, como nunca mais voltou ao Quénia.
Em Portugal, mais concretamente na região de Lisboa, a sua equipa de reportagem organizou uma simulação com câmara oculta para, fingindo-se interessada, encontrar o rastilho dos seus praticantes. Foi-lhe indicada uma mulher da Guiné, a viver no Cacém. Não chegaram a combinar o preço, mas o contacto disse-lhe que, “se ela não pudesse fazê-lo, ele conhecia quem poderia.”
Casos existem em que as meninas, quase sempre africanas, embora muitas vezes nascidas em Portugal, são levadas pelos familiares em período de férias aos seus países de origem para serem submetidas a esta barbaridade. Há épocas propícias, à luz das culturas africanas, para a realização das mutilações: nalguns países é na época das chuvas, noutros no inverno, o que coincide com o período do nosso verão.
Quando estas meninas sobrevivem, crescem e acabam por casar e ser mães, em Portugal ou noutro país europeu. E nos serviços de saúde pode ocorrer um fenómeno tão bizarro quanto chocante: num número significativo de casos, os técnicos de saúde, por exemplo na sala de partos, não identificam as cicatrizes ou a dificuldade de dar à luz destas mulheres como sendo decorrentes de uma mutilação genital na infância; atribuem frequentemente estas anomalias a malformações de nascença ou partos anteriores realizados de forma incorreta!
Como me custa a acreditar que tais sinais anatómicos não sejam por demais evidentes, pergunto: não será mais “confortável” não querer ver, do que encarar uma realidade que é chocante e com a qual não se sabe exatamente como lidar???
No Egito, país onde esta prática parece remontar ao tempo dos Faraós, alguns dos médicos adotaram a seguinte medida, que eles consideram profilática: já que a mutilação genital se faz, então que se faça com instrumentos cirúrgicos esterilizados, para evitar infeções. Na realidade, a OMS proibe que os médicos pratiquem qualquer mutilação que não seja por razões estritamente médicas e sempre para salvar uma vida, nunca para arruiná-la!
As “comadres”, “tias”, “avós” ou curandeiras, que normalmente fazem isto nas aldeias, podem usar desde facas, até lâminas de barbear, latas, cacos de vidro ou qualquer objeto cortante que tenham à mão. Estirpam o clítoris e os pequenos lábios da vulva das meninas e posteriormente cosem-na com uma agulha e uma linha.
Evidentemente que existe um grande número de meninas que morre por hemorragias ou infeção generalizada. Outras contraem infeções pélvicas graves, com sequelas crónicas de esterilidade. Outras ainda contraem hepatite B ou VIH, acabando por morrer também, ou contaminar os seus bebés, se chegarem a tê-los, contribuindo assim para espalhar o flagelo da SIDA em África.
Do ponto de vista da integridade física, aquelas raparigas nunca aprendem a lidar com o seu corpo como algo que dá prazer, pois sempre associam a sexualidade à dor. São mulheres que não estão (nem estarão nunca) inteiras. Também as sequelas psicológicas são incalculáveis. Sentimentos de frustração, rancor e ódio aos seus carrascos são frequentes. Muitas vezes ao pai, pois embora a prática seja levada a cabo por mulheres, é incentivada pelos homens.
A deformidade resultante de uma mutilação genital pode ser ligeiramente atenuada com uma cirurgia plástica de reconstrução, o que pode custar cerca de 15 mil euros. Mas a mulher nunca chegará a obter prazer sexual, o que resulta numa incapacidade para ultrapassar completamente o traumatismo.
Há que alertar as consciências para esta barbaridade e não há outra forma senão a denúncia sistemática e contundente destas práticas. Há quem lhes chame “medievais”, mas têm a sua raíz muito mais para trás da Idade Média. Perde-se no tempo e nos mais remotos ritos tribais ancestrais, desde há pelo menos 3000 anos.
Há do meu ponto de vista uma componente machista nesta prática, pois a mulher mutilada é uma mulher que não tem prazer no sexo; logo, não procurará outros homens e a função dos seus órgãos será meramente reprodutora. Daqui podemos inferir que ela passa a ser um bem patrimonial, mas não um ser com direitos iguais, que poderia até desejar outros homens. Então, a mulher mutilada confere ao homem uma espécie de "garantia" de propriedade e de fidelidade! Logo, a continuidade das mutilações convém à mentalidade machista, reinante nas sociedades fortemente patriarcais.
As organizações ativistas neste campo alertam para o facto de que esta prática está mais difundida em países onde as meninas são impedidas de ir à escola, têm menos direitos que os seus irmãos rapazes e a quem é vedada uma série de direitos: à instrução, ao emprego, à autonomia e à cidadania, pois muitas vezes nem registo de nascimento possuem.
Portanto, como muitas vezes acontece, é o atraso civilizacional e o atavismo das mentalidades retrógradas a atentar contra os direitos humanos.
Mito, religião, magia? Não sei, mas a Cultura e as Tradições não podem justificar tudo. Nem tudo o que é “cultural” é aceitável do ponto de vista dos Direitos Humanos. Esta prática é intolerável sob todos os pontos de vista: físico, psicológico, social, cultural, ético e religioso.
O Sheik Munir, Imã da mesquita de Lisboa, foi ouvido a este respeito e afirmou categoricamente que tal prática não está enquadrada em sítio algum do Corão. E acrescentou ainda que “o próprio profeta Maomé teve várias filhas e nenhuma delas foi mutilada”. Também não há na Bíblia ou em qualquer outro livro sagrado apelos a esta prática, pelo que tentar fundamentá-la na religião é um argumento falacioso.
O pessoal médico deve ser alertado, assim como os governantes, os legisladores, os professores e toda a comunidade: uma prática que implique um desrespeito pelos valores da vida humana e da integridade dos indivíduos, física ou psicológica, deve ser pura e simplesmente banida e criminalizada, tanto à luz das leis dos países como do Direito Internacional.
Lelé Batita
(Ilustração de autor que não foi possível identificar)