domingo, 20 de junho de 2010
"A Morte é só nossa e parte connosco"
Ao lusco-fusco, pairava sobre Lisboa aquela luminosidade ténue dos fins de tarde especiais. Uma névoa deixava entrever, de quando em vez um raio de sol que teimava em espreitar. Reinava uma calma que parecia propositada para aquele momento de recolhimento.
A nobre escadaria, ladeada pelos imensos castiçais dourados tinha ontem uma luz especial derramada pela clarabóia.
Cheirava a flores como se fosse um campo primaveril. As cerca de trinta coroas sumptuosamente arranjadas com flores naturais e estrategicamente colocadas, emprestavam ao ambiente um perfume que nada tinha a ver com morte, no sentido lúgubre a que fui habituada.
Aquele que tinha sido até há poucas horas o rosto de José, estava agora emudecido, placidamente aguardando o desfecho daquele fim, já que em nenhuma outra trajectória acreditava.
Nunca tinha visto um morto de óculos. Pilar não deve ter querido alterar-lhe a imagem de todos conhecida. Ele não tinha uma expressão de agonia, nem de sofrimento, antes uma tranquilidade de quem cumpriu o caminho e dorme agora, serenamente, o sono dos justos.
Eu estava pela primeira vez a participar num velório fora de um espaço religioso. As missas, o cheiro a mofo das capelas funerárias e os choros, quantas vezes postiços, sempre me irritaram muito, para não falar dos cumprimentos, efusivamente falsos, às famílias dos defuntos.
Ali tudo era diferente. Um morto que fora ateu, em espaço público, profano, arejado, belo, iluminado, enquadrado por magníficas pinturas onde sobressaem heróis reais da cultura portuguesa, faziam parecer aquele velório uma cena irreal, como se de um filme se tratasse.
No entanto, a autenticidade e a simplicidade despretensiosa que se respirava ali, tinham tudo a ver com o sentimento identitário que algumas figuras da cultura portuguesa, por serem especiais, genuinamente fazem nascer nos cidadãos anónimos.
Não era preciso dar condolências, nem chorar, nem fingir desgosto, nem fazer o sinal da cruz, nem ajoelhar, nem rezar, nem fungar para o lenço, nem deixar mensagens pré-formatadas em fitas brancas ou lilases. Apenas comparecer, numa interioridade discreta, prestar uma homenagem cuja forma só o íntimo de cada um concebera, aceitar este luto e partir. Silenciosamente, como se entrou.
As memórias, essas ficarão com cada um dos cidadãos que, como eu, quiseram despedir-se de José. Esse mesmo, o que tem nome de erva. Para muitos uma erva daninha, adubada de nefasta heresia, ainda hoje condenada pelo jornal oficial do Vaticano, que nem perante a morte mostra qualquer tolerância. Mas para muitos outros uma erva-doce de lucidez, de autenticidade e de criatividade, temperada de uma coragem como só se conhece raramente.
Fotos de (c)Pérola de Cultura
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Anche io amo la fotografia. Ti lascio un saluto e buona serata.
ResponderEliminarGio'
http://remenberphoto.blogspot.com/
Li tudo o que publicou no seu blogue sobre José Saramago e não me ocorre mais nada porque em minha modesta opinião, está tudo dito e muito bem. Partilho da sua opinião, comecei a lê-lo logo que saíu o Memorial e tive a grande oportunidade de ver a ópera no Largo do São Carlos, através de um grande telão colocado, penso, pela Câmara de Lisboa, dado que os bilhetes para o teatro se haviam esgotado rapidamente. Tinha cadeiras e tudo. Foi já há alguns anos. Não li a obra toda, mas considero que li bastantes. Lembro sempre em primeiro lugar de um "Todos os Nomes", de que gostei especialmente. Tenho um autografado, penso que é "O Ano da Morte de Ricardo Reis" de que também gosto muito, talvez por ser Lisboeta. Gosto imenso da escrita dele, o jogo que faz com a nossa língua é genial e quanto à pontuação estranhei defacto quando li pela primeira vez, mas não no Saramago, muito antes, no Vargas Llosa, escritor que admiro muito também. Mas voltando à escrita de Saramago a pontuação está lá é preciso saber ler e interpretar, para muitos, o verdadeiro problema. Outro problema é os portugueses apreciarem tudo com olhar politiqueiro, não serem capazes de separar águas. Afinal, já escrevi mais do que pensava. Parabéns pela sua escrita. Maria Fernanda
ResponderEliminarGostei muito do seu texto em primeira pessoa. Muito bem escrito, muito natural. Ainda bem que foi lá para nos contar tudo com esta simplicidade. Obrigada.
ResponderEliminarLena, bonito texto! Estive a ver as últimas homenagens a José Saramago e, na verdade, impressionaram-me não só os discursos emocionados e sentidos dos vários oradores, mas também a "simplicidade e autenticidade" de todos aqueles cidadãos anónimos ali presentes, alguns curiosamente dizendo-se analfabetos, mas que, mesmo assim e com singelas palavras, conseguiram realçar a grandeza e excelência deste cidadão e escritor português!
ResponderEliminarTinha de ir. Aceitar a inevitabilidade da despedida é condição essencial para cumprir o luto.
ResponderEliminarEste, não sendo um luto pessoal, é-o no plano intelectual; a morte de Saramago é uma perda a nível literário, filosófico e humano, que não posso deixar de assumir como sendo também minha.
Obrigada pelas vossas palavras de apreço pelos meus textos.
ResponderEliminarNo dia em que deixar de sentir a escrita como uma necessidade que se impõe, a primeira coisa que farei é encerrar este Blogue.
Até lá, ele é um espaço de partilha para vós.
Um texto brilhante que recorre ao lirismo para nos fazer perceber a importância do Homem de quem nos despedimos... Uma análise atenta e intemporal que esmiuça a derradeira existência de José Saramago. Palavras de respeito e pesar que partilho como sendo (também) minhas.
ResponderEliminarObrigado Lelé, pela emoção que sempre nos transmite com as suas palavras.
Obrigada, Pedro.
ResponderEliminarEste Blogue já é também a sua casa.
Excelente texto sobre um homem que teve a coragem de ser coerente consigo próprio. E que para além da inquestionável inteligência, foi também um exemplo de coragem. É dele um dos livros que mais me emocionou pelo admirável retrato sobre o ser humano, nele contido, e que se chama Ensaio Sobre a Cegueira.
ResponderEliminarObrigada, João. Acho o mesmo: a coragem e a coerência são virtudes maiores num ser humano.
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